segunda-feira, 7 de maio de 2012

Reflexão sobre bibliografia

Diz-se que a infância é o tempo mais feliz da existência. Creio que não é sempre o caso. Poucos são aqueles cuja infância é feliz. A idealização da infância provida de tudo, e abundantemente, a infância sem nuvens, nas famílias hereditáriamente ricas e instruídas, toda carinho e brinquedos, fica na memória como uma clareira inundada de sol, à beira do caminho da vida. Os grandes senhores da literatura ou os plebeus que os cantaram, exageraram esta idéia da infância toda penetrada de espírito aristocrático. A imensa maioria, se olhar para trás, se aperceberá, ao contrário, sómente de uma infância sombria, mal alimentada, escravizada. A vida dá os seus golpes nos fracos, e quem será mais fraco do que as crianças?

Minha infância não conheceu fome nem frio. Quando nasci, a família dos meus pais possuía uma certa abastança. Mas era o bem estar rigoroso da gente que sai da indigência para se elevar e que não tem nenhuma vontade de parar a meio caminho. todos os músculos eram tendidos, todas as idéias dirigidas no sentido do trabalho e da acumulação. Neste gênero de existência, o lugar reservado às crianças era mais que modesto. Não conheciamos a necessidade, mas também não conhecemos tampouco as larguezas de vida, nem os seus carinhos. A infância não foi para mim uma clareira ensolarada como para uma minoria ínfima; também não foi a caverna da fome, dos maus tratos e dos insultos, como acontece à maioria. Foi uma infância cinzenta, numa família pequeno-burguesa, na aldeia, num canto perdido, onde a natureza é larga, mas os costumes, as opiniões, os interesses são estreitos, mesquinhos.

A atmosfera espiritual que envolveu os meus primeiros anos e ambientes em que decorreu depois minha vida consciente são dois mundos diferentes, separados um do outro não só por dezenas de anos e por grandes espaços, mas também pelas arestas de grandes acontecimentos e erosões interiores, menos notáveis, mas que não são menos consideráveis para o indivíduo. Quando esbocei pela primeira vez estas recordações, pareceu-me mais de uma vez que não descrevia minha infância, mas uma viagem de outrora para um pís logínquo. Tentei mesmo contar o que tinha vivido, falando de mim em terceira pessoa. Mas esta forma convencional cai muito fácilmente na mera literatura, e é isso que eu queria evitar antes de tudo.

Minha Vida - Leon Trotsky. 2ª edição. Paz e Terra - Tradução Lívio Xavier, 1879-1940.

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